

7 e 54. ainda acordados
– Dormir não é tão complicado. Lente de contato subcutânea, submersa em olhos fechados, lado a lado a discursos provocantes-mirabolantes, maquiavélicos de outros passados. Não me perturbe mais, passado, és o atrasado, estás aquém de quem me conforta, de que me intriga, de qual me devora.
– Sempre é bom, é fácil e mentiroso, ouvir, sentir, ver e ter uma mão que passa sobre a cabeça, que diz “tudo bem, ainda há tempo nessa vida; acontece com todos; pode desistir”. Indefesos sentidos, confortantes carinhos, torturantes paredes nada estruturadas. Torne sua vida C O N S T R U T I
– VA e vá fazer café. Acorda pra vida, meu bem. Procura algo que te realiza. Seja firme, forte, viril e seguro de si.
– Mas parte firme, não existe. Parte fraca, se exime. Parte oca, há tantas. Parte viva…
– Pare de drama! Pragmático ser que vive em sonhos ilusórios de uma corrente inconseqüente-mente recorrente ao seu SUB “consciente”, que diz, hoje, com vontade:
– Não minto, sou eu e minha caneta e minhas verdades. Não hei de fugir agora e não hei de desistir jamais.
– Por que iria?
– Por que o histórico, cerebral, factual, atual e comportamental indica certas tendências de atos?
– Baboseira psicodramática. Quem indica como ajo sou eu e meus dados jogados na sorte, sempre certeira, em um jogo de azar excluído, azar anulado.
– Não é o caso.
– No sono, escasso, sonhei de novo com aquela garota, sonho bizarro. Ela nunca conseguira atravessar a linha da autoridade, da liberdade prisional, do ser crescente, consciente. É normal viver dilemas, o anormal é não tentar resolvê-los.
– A garota?
– Não conseguia resolvê-los, se dissolvia em soluções retroativas, se sentia presa a decisões passivas e rebatia seu cotidiano em dilemas exageradamente inventados. Estava enjaulada pelos demônios melodramáticos televisionados pela sua sempre operante mente que não parava de correr, como naquele filme, não sei o nome. Antonioni, talvez.
– Pasolini?
– O cinema não a perturbava, afinal, ao cinema só lhe cabe o fragmento de excepcionais temores e amores. A este garota não havia escapatória, seu pés estavam sempre travados a um chão acimentado de incertezas e seus olhos passíveis a seguranças falíveis a discursos contrários dos seus.
– Estava estagnada.
– Vira o trem passar e ela entrara em nenhum vagão real, nenhum que a levasse a uma estação realizada ou no mínimo elaborada, que fosse tátil. Preferia ficar na ilusão construída na sua insanidade.
– Então era um caso de loucura?
– Não quis dizer loucura, a garota não era louca. Também dispenso este termo, pois poderíamos cair em outro dilema, em um debate conceitual, que inclusive eu falharia ao ajudar a resolver. Loucura, como conhecemos, é caso clínico e não é a hora de disseminar tal insinuação. Cabe aqui disseminar literatura, e os literários, elaborada por seres solitários.
– Já que o caso não é clínico, não sejamos cínicos. A personagem, ali, negou a travessia, de fato, o cruzar da linha da autoridade, não pegara o vagão realizado, nem intentara qualquer metáfora catalogada em encadernações freudianas sobre o caso. Vivera definitivamente estagnada e só literatura será porque aqui agora está registrada.
– Realmente, pois ao abrir os olhos, cinco minutos depois do despertar, será apagada, como tantos outros sonhos sonhados.
-Dormir não é tão complicado, mas abraço as minhas palavras, companheiras e sem sentido aos quem aspiraram lê-las. Foda-se. Não peço que leiam, nem sei se um dia as publicarei, só escrevo descompassadamente, fora de forma, ao meu crer, longe de normas, sem padrão, sem conceito. As palavras são companheiras condizentes ao subconsciente que está presente nos momentos desta tal insônia-insânia.
– Então porque não dormes, fecha os olhos, ao menos tente! Discursas de forma feroz, contas que não é difícil dormir, mas não dormes, nem ambicionas isto.
– Gosto de sentar e refletir antes de tentar adormecer. Assim, enriqueço meus atos, reflito sobre os fatos, enfrento os ratos dos porões do meu passado.
– O passado se foi, não há o que ser enfrentado, a não ser que tenha algo que o atormentes, que mal fizeste, do que se arrependes. Existe?
– Não temo perguntas banais. Não meço respostas, também. Quero as rédeas de mim, ao contrário da garota.
– Não é questão de rédeas, ingenuidade. Eu, que vejo tudo de fora e de dentro, ouço lamentações envergonhadas, vou te dizer: nasceste em um lugar que não havia certeza de coisa alguma, nem de vida, nem de morte. Acreditavam, que após partir, poderias voltar, como aquele barbudo daquele livro que muitos acreditam e poucos leem. Não havia certeza se chegarias viril aos 16 anos, como um bom filhote da raça humana. Aprendeste a viver do seu modo e com os seus próprios passos, depois de uma criação cheia de temores. Te ensinaram a dar só meio passo, sempre em um compasso atrasado aos outros filhotes mais espertos do colegial. Esperteza, nem sabias o que era, pois ainda estava na era das descobertas. Então assim assimilaste, pesquisaste - em escritos documentais e em empíricos momentos memoriais, tão raros, mas alguns dramaticamente transformados em traumas hiperbólicos. Tiveste sorte de ser aceito pelo destino, de ser inteligente ao pensar no infinito, em ter dialogado com o todo universal e de ter sorrido para a vida em suas particularidades, nas quais te abraçaram, pois nunca seria de outra forma, e te deram uma gama de possibilidades cósmicas alucinadas por psicoativos bélicos da alma que confrontaram com os procedimentos da sociedade padronizada: siga assim, seja assim. Pouco tu adaptaste, muitas vezes mimetizou-se, aos cantos procuraste e então, chegaste até hoje, no escanteio dos sem vergonha, com um passado esclarecido por reflexões ao dormir e objetivações de quem o quer bem e de quem o conhece tão claramente. Às vezes, mantiveste apagado o que passou em seus dizeres, aprendeste a mentir, porém lá sempre estavam as tuas vivências, em seus cognatos, expondo as incertezas de seus meios passos. Restam, do escanteio até lá fora, somente novos dias, embora este diálogo terapêutico multipolar pareça ser uma escapatória retórica de um fraco literário tentando provar ser autosuficiente, mas aqui é assim que somos: uma obra ficcional, pura literatura, e como toda literatura, atrelada ao real, nem que seja a uma realidade arquitetada na mente do escritor.
– Se me conheces tão bem, me diga, caro filho de Freud. Porque a garota não anda adiante?
– Esta pergunta retórica é meu grande dilema. Sofro com ela, sangro em respostas quem me tocam.
– Nenhuma superfície é tão sensível a respostas. Importa-se muito com compreensões do ego e com a necessidade de aceitação.
– Hoje escrevo sobre dilemas. Vivia neste ilusório, nas fabulações de querer ser um lord no meio dos lords, mas há o que me agrade, há o que me encante e há o que me satisfaça.
– O amor?
– A este tenho demais e por isso gostam de estar ao meu lado. Porém já esqueci de olhar para ele, já esqueci de ver que posso viver além dele, nunca sem, pois está em minha essência e na essência de quem vivo junto.
– Então deite e feche os olhos, não temos mais o que conversar, afinal, dormir não é tão complicado.
– Espero não sonhar com a garota estagnada.
– Tranqüilo, meu lord unique. Não estarás solitário. Não serás pura literatura. Não te esquecerás ao abrir os olhos. Teu sonho, passado, que te perturbas, já cruzou a linha. Agora nada mais é que um escrito literário.
Inti Raymi
Florianópolis, 11 de junho de 2020.