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coluna qualquer

pedra no asfalto

 

Na mão direita, a lata e na esquerda, o isqueiro acende a droga Paulo Roberto na rua de acesso ao túnel Antonieta de Barros, sábado, 20 de julho de 2020, por volta das 10 horas e 52 minutos da noite, sozinho e supostamente sem calçado no pé direito. 

Enquanto ocorria o consumo do entorpecente de característica obscura e origem praticamente irrastreável, Paulo se manteve sentado no limite do canteiro entre as pistas de tráfego de veículos que ali passavam pelo letargo cidadão que consigo carregava o velho título de eleitor do tempo da ditadura no bolso da surrada pochete jeans azul. 

Com o fim da droga após alguns minutos fumando, Paulo coxeou pelo gramado do canteiro central da via enquanto os carros transitavam, agora, sem o risco de acertá-lo por volição.

Neste dia, como em todos os outros, nesta rua e como em quase qualquer outra em todo o mundo, combalidos humanos vagam por aptidão ou consequência em busca de novos dias como Paulo Roberto. 

 

situação de estado

A idolatrada, salve, salve, pátria amada foi subjetivamente e de forma ocasional dada como falida pela humanidade que a ela comporta. Todos os milhões de populares, que aqui e agora se encontram em total descompensação social para suportar as consequências capitais decorrentes do término do Estado e da nação, estão a mercê de suas próprias possibilidades e ofertas, sem qualquer apoio de êne tipo, mesmo que seja apenas para finalmente ser eliminado da face desta triste Terra humana. Tudo, e quase praticamente o que restar além disso, será controlado pelas Leis do Mercado, sejam elas quais forem. 

cruzamento perigoso

 

Em um troca-troca de olhares incessantes ao caminhar pela rua Sete de Setembro, a concentração dos sentidos de Pablo, 22 anos, foram fatalmente impetrados pelo balançar de pernas, entre as dezenas de pernas que cruzavam a faixa de pedestres em caminho de suas obrigações, de Garbine, 22 anos, quem aparentemente não notou a presença do provocativo transeunte e nada se intimidou em um caminhar tranquilo que se perdeu no meio do magote. 

Pablo, a princípio, nada fez, como sempre. Garbine radiava felicidade.

 

capítulo final

 

Às 21 horas e 15 minutos de 13 de agosto de 2020, foram descontinuados os 78 anos, cinco meses, oito dias, catorze horas, vinte e sete segundos e quarenta e oito segundos de batimentos ininterruptos do coração de Norberto Nascimento das Oliveiras, após a total inexistência de oxigênio para o pulso habitual de seu agora inutilizado órgão vital, decorrente à obstrução total de sua traqueia com uma insigne porção de paçoca Amor. 

As banhas do corpo batiam no sofá do pé a cabeça levemente tombada e com a boca cheia desta mistura deleitosa de amendoim, leite condensado e biscoito, quitute elementar para apreciação alegórica antes do último capítulo da novela, porém o fim brusco coube ao dono do único organismo bípede do ambiente, encontrado somente no dia seguinte sem saber como acabou a aventura.

 

impulso fatal

 

Foi Suzana Matriciana, 37 anos, quando apertou o interruptor para ligar o condicionador de ar da sala de fumantes da companhia marítima do Bongolistão, localizada no porto das Ilhas Sanduíche, que, através de um aumento repentino de corrente elétrica na fiação, gerou, apesar da baixa taxa de oxigênio do local, uma chama de grandes proporções e de acionamento instantâneo de alarmantes sonidos de ajuda porém insuficientes para salvá-la do crescente movimento desordenado por grande temperatura e pressão que gerou uma destruição e uma liberação de energia de moléculas de materiais químicos inofensivos, estocados na sua empresa e utilizados para matar peste de milho, porém perigosos se elevados a grandes temperaturas, principalmente em grande quantidade, causando, para a tristeza de sua alma, uma violenta liberação de carga cinética, grandes quantidades de gases, muito calor e uma brutal força ondulatória de propagação radial e centrífuga, de velocidade decrescente a partir do ponto de explosão, sobre cada barreira física, de construção ou corpo humano, animal, vegetal ou pedra que encontrou pelo caminho, mandando tudo literalmente pelos ares e a quilômetros de distância.

Suzana não sofreu. Ela era um anjo divino, mas que foi enganada por uma força maligna e perdeu o seu poder sobre o plano terreno, voltou aos céus como mártir e agora acompanha todas as notícias do acidente pelas redes sociais. 

 

efeito borboleta

 

Um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez, onze, doze vezes depois dos feixes de fibras celulares do músculo braquial do braço direito de Pedro flexionarem dez mil gramas de metal, criado através da queima de carvão para hematita transferir elétrons e gerar o óxido de ferro, reagente com monóxido de carbono para a criação de ferro metálico e liberação do famoso gás carbônico, um lepidóptero, provavelmente um tabaco-de-espanha, batia velozmente quinze vezes por segundo as suas asas amarelas como folhas de ipês para fora da academia, de amplas janelas, modernas modalidades de condicionamento físico e jardins verticalizados comumente vistos nas revistas de arquitetura, quando cruzou a rua e o campo de visão de Abílio, ao ponto de distraí-lo do seu afazer comum, que é a segura e limpa retirada de pratos e xícaras sujos da mesa de clientes no café ao lado da academia, para liberar, durante o seu ledo vôo, secreções vegetais, aprazíveis para qualquer espirotromba, diretamente no fluxo inspiratório das grandes narinas do humilde trabalhador, gerando instantaneamente uma inflamação de pequeno porte na concha nasal superior do mesmo e, em efeito cascata, resultando na expulsão de ar, convulsiva e semi-autônoma, pelo nariz e pela boca de gotículas infecciosas de diversos diâmetros em direção da testa, maçã direita, têmpora esquerda e todo resto da face castigada pelo tempo, mas muito bem tratada, de Madeleine Charrua, herdeira da família Charrua, octogenária amiga da sócia-proprietária do café, principal cliente do estabelecimento e muito famosa por suas criativas mixórdias. 

Madeleine fez um imenso alarido e Abílio foi demitido, perdeu o plano de saúde e decidiu interromper o tratamento de rinite com corticóides porque não parecia estar funcionando.   

 

ação e reação

 

Como um bêbado, um louco, um vagamundo, um viciado, um drogado, um perdido em busca de parecer com algo mas na verdade com a certeza de que todo mundo, como ele, está na mesma situação de desilusão total com a vida, seja pelo motivo que for, no seu caso, após mais um relacionamento amoroso fracassado, mais uma vez pelos mesmos motivos, é como se sente Zeca, 30 anos, que prefere não mudar, apenas lamentar e se drogar a noite toda com uma lata de cola de alfaiate até desmaiar para dormir no chão e em meio de roupas sujas, pacotes de bolachas vazios, roncos ultra sônicos e pesadelos tortuosos, agindo de maneira autodestrutiva como forma de liberar em sua válvula de escape a, famosa e corriqueira condição na literatura psicoterapeuta, condição de vítima da sociedade, composta na maioria por traumas da infância, principalmente pelo total abandono paterno, que hoje é simbolicamente preenchido por jantares em restaurantes caros, apesar de acompanhados de conversas vazias que mais parecem acontecer entre dois desconhecidos. 

No fundo, os dois parecem com o que não são. 

Zeca esconde que se drogou a noite toda, que se odeia, odeia a vida e tudo que o cerca, nem seu pai admite que foi um porco egoísta que abandonou o pobre filho, coitado, sem amor durante o período mais delicado de sua vida.

 

túnel do tempo

 

Foi quando a condução coletiva urbana motorizada entrou no túnel a destino de Balneário Camboriú que ficou inelutável evitar a vontade de chorar, a ponto da primeira lágrima escorrer quando o interior do transporte se obscureceu, com uma alegoria para o dissipar inapelável, o remate cabal e o precoce e inevitável luto, mas dando certeza irrestrita do juízo, de Laura Fonseca, que há dois anos namora um cara legal, com quem tem uma ótima relação, porém cada vez mais monótona e sem objetivos, bastante castigada pela dúvida do futuro e pelo seu ímpeto natural poligâmico que não combina em qualquer acepção com a relação que os dois levam, apesar de ser boa muitas vezes.

Por fim, ela sabe que eles irão sofrer sem os domingos preguiçosos, os passeios em família, os amigos, até do sexo e de muitas outras coisas, mas prefere deixá-lo a traí-lo com mentiras e puladas de cerca.

Quando o ônibus saiu do túnel e novamente se iluminou com a claridade do dia, Laura só conseguia achar aqueles prédios horrorosos demais.

Inti Raymi

Florianópolis, 20 de agosto de 2020.

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