REVISTA GRÁTIS - EDIÇÃO 01 - FEVEREIRO/2017



E
u devia ter uns nove ou dez anos, na minha classe havia esse gordo, não somente um menino rechonchudo, não, ele era obeso, do tipo que denunciava um óbvio descaso dos pais para com a alimentação do infeliz. Além disso, ele era repetente, dois ou três anos mais velho que o resto dos alunos. Pra mim ele tinha rodado de ano tantas vezes pelo fato de possuir um gênio detestavelmente teimoso e ser surdo-mudo, o que tornava no mínimo, bastante desafiadora a tarefa de ensinar qualquer coisa a ele. Nessa escola existiam salas especiais para deficientes auditivos, no entanto alguns participavam também das classes convencionais, o que promovia a integração entre alunos de diferentes condições. No caso dele, essas tentativas revelavam-se bastante infrutíferas pois era sem dúvida a criança menos integrada da classe. É claro que segundo a diretora, os professores estavam fazendo cursos para poderem dar aula para surdos-mudos, mas na prática era usual não se dar dessa forma. Os professores raramente logravam passar o conteúdo aos deficientes auditivos tão bem quanto ao restante da classe, até mesmo os poucos membros do corpo docente que de fato aprenderam a língua de sinais. Com o tempo notei que Cassiano sentia que iria sempre estar um passo atrás na percepção de tudo que ocorria naquela sala, e notei também, como isso o enchia de raiva.
Posso dizer com total convicção que aquele desgraçado era a criança mais odiada por todos daquela turma da terceira série. Claro que não por ele ser deficiente auditivo, gordo ou repetente, já que haviam outros deficientes, gordos e repetentes, sendo alguns inclusive muito bem quistos. O que tornava a convivência com ele insuportável era seu prevalecimento físico para com os relativamente esquálidos colegas. Não havia uma aula de educação física ou recreio em que Cassiano ou como eu me referia à ele mentalmente: “esse gordo filho da puta” não se valesse de seu tamanho e agredisse ou intimidasse algum desafortunado. Durante uma época, não raramente, eu era um desses desafortunados. De certa forma, eu entendia seus frequentes acessos de raiva, devido a sua deficiência quando em meio a outros não deficientes, além da continua comparação através das notas em um sistema escolar muitas vezes penosamente competitivo. Somava-se a isso sua mórbida obesidade e se chega então a uma amargura que me parecia em parte justificada, aliás acho que em maior ou menor grau todos compreendiam isso e sentiam pena, mas isso como há de se esperar só aumentava sua ira. Imagino que os únicos momentos que ele colocava pra fora esse sentimento contido eram quando ele batia em alguém ou comia, sim, porque ele não era apenas gordo, ele tinha o “espirito de gordo”, aquela mistura de mesquinhez com exagero que não necessariamente se manifesta em pessoas de fato gordas, mas que provavelmente causou muitos dos maiores desastres da humanidade. É crível que esse espirito de gordo seria o que mataria Cassiano quando ele já tivesse seus cinquenta ou sessenta anos e algumas artérias entupidas, mas quis o destino que em decorrência de minhas ações sua morte viesse antes, muito antes.
Minha capacidade de empatia fazia eu me solidarizar com sua triste condição, contudo estava longe de não sentir raiva quando lhe entretiam suas agressões gratuitas dirigidas a mim e aos outros. Até aí tudo bem, eu já havia encontrado antes outros repetentes que extravasavam por meio de agressões físicas suas frustrações e nutria por eles igual raiva, apesar de saber que era comum eles também serem vítimas de condições dignas de pena. Muitas vezes eram filhos de famílias desestruturadas, com pais violentos que batiam neles a revelia, pais que sequer preocupavam-se em explicar porque estavam castigando-os. Eu também me compadecia por eles, mas a raiva de ser alvo das frustrações alheias era sempre maior. Minha raiva cresceu conforme Cassiano mantinha sua rotina de agressões e humilhações gratuitas, cresceu a ponto de eu me valer de artimanhas montecristianas durante meus ímpetos de vingança. A forma de Cassiano agir muitas vezes também beirava a crueldade, mas por ser baseada na força bruta não carecia de esperteza ou qualquer sutileza. Já o troco que lhe era devido, teria de ser meticuloso e reto onde dói.
Durante um tempo, as agressões eram tão frequentes e despropositadas que a única coisa que eu podia fazer para aplacar o sentimento de indignação e impotência era de fato atazanar aquela criatura, para que ao menos quando eu apanhasse, fosse por algum motivo. Nessa época, tanto eu quanto ele sentávamos na primeira fileira em lados opostos, cada um de costas para a parede e não era raro ficarmos nos encarando. Não pensem que por basear sua crueldade em agressões físicas, ele não impunha uma tentativa de pesadelo psicológico também. Era costumaz ele bater com uma mão fechada contra a palma da outra anunciando o que aguardava algum colega no intervalo. Esse foi seu primeiro erro, pois ele se julgava mais forte que eu fisicamente e nisso estava obviamente certo, mas também se julgava mais forte que eu em vontade e auto-controle, e claro, como portador de espirito de gordo que era, equivocava-se. Suas ameaças pouco me importavam e a única parte das agressões verbais que me afetavam eram as de cunho humilhante frente aos demais, suas bravatas desarticuladas e promessas de me fazer sangrar pouco me afetavam. Então lá ficávamos nós, sentados na primeira fila há uns dez metros de distancia um do outro com a professora lecionando entre nós. Foi aí que eu tive a idéia de provocá-lo de um jeito especialmente maquiavélico.
Sendo ele deficiente auditivo, eu sabia que sua capacidade de ler lábios era particularmente boa, então nada melhor que me valer disso em minha vendetta contra aquele gordo filho da puta. GORDO FILHO DA PUTA, era isso que eu ficava repetindo sem emitir som algum enquanto nos fitávamos sentados nos lados opostos da sala. Seu acesso de raiva era instantâneo, ele se levantava e vinha como um touro em minha direção, mas eu tomava o cuidado de só fazer isso quando a professora estava entre nós, para que ela de pronto o contivesse enquanto ele tentava explicar o que acontecia. Felizmente para mim em função de sua capacidade de vocalização limitada, Cassiano não conseguia explicar algo relativamente tão complexo como esse meu artifício. E nessa hora eu ria… ria muito, não porque achasse tão engraçado assim ele falando daquele jeito ininteligível, mas sim porque eu sabia que nessa hora ele sentia mais raiva.
No mais era isso, Cassiano podia sempre esperar o intervalo ou o fim da aula para retaliar minhas silenciosas afrontas, e acreditem, ele o fazia com entusiasmo. Na minha sala haviam muitos outros que se soubessem de minha técnica sádica também a utilizariam na esperança de apaziguarem a raiva que nutriam de nosso agressor comum, mas eu não revelava ela à ninguém, pois sabia que caso se tornasse prática comum, logo algum professor ficaria sabendo. Não podia permitir que isso acontecesse, já que quando ele tentava inutilmente revelar minha silenciosas ofensas era justamente o momento que eu mais me realizava. Se a professora tomasse conhecimento, além de receber um castigo exemplar, eu perderia também minha melhor arma contra seu regime de terror. Entretanto, só isso não era suficiente, eu queria um poder de fogo maior.
Nessa época, então, ocorreu uma aposta de quem conseguiria comer mais pratos da merenda oferecida pela escola. Eu quase nunca comia a merenda da escola, geralmente era bem ruinzinha e quem a comia era porque não tinha coisa melhores em casa. Cassiano resolveu competir e era um dos favoritos. Os outros que tinham aceito a disputa eram todos de séries mais avançadas, nenhum chegava perto da minha idade, mas mesmo assim eu resolvi competir, apenas pela chance de ganhar do meu antagonista glutão. No final sobramos só nós dois, eu estava tão cheio que parecia que ia sair macarrão pelo umbigo, Cassiano também já não comia como antes. Estávamos no terceiro ou quarto prato e as mastigadas já estavam esparsas e penosas, eu não podia deixar ele ganhar, pouco me importava os cinco ou seis reais que iria lucrar se vencesse, eu não podia era deixar aquele obeso bastardo sair ganhador. Foi então que ele arregou, eu ainda terminei o prato e fui reclamar meu prêmio que já estava na mão dele, provavelmente porque ninguém realmente acreditava que um garoto franzino tinha chance contra aquele mamute pré-adolescente. No entanto Cassiano colocou o dinheiro no bolso e resolveu sair da cantina, com cara de que ia vomitar, e acho que por isso nenhum dos alunos das turmas mas avançadas o fez devolver o dinheiro ou entregar à mim. Ele foi para o banheiro e eu esperei até o intervalo terminar, mas nada de Cassiano sair, fui pra sala e alguns minutos depois da aula começar ele apareceu. A professora deixou o atraso por isso mesmo e continuou a aula. Já eu não ia deixar por isso mesmo, fiz o sinal universal de mendicância colocando a palma da mão pra cima e com o indicador cutuquei o centro da mão. Ele fez uma cara de pouco caso, deu uma risadinha, e olhou pra frente me ignorando.
Cassiano fôra um calhorda, mas isso de certa forma eu já esperava, fazia parte do seu modus operandi. O problema foi no dia seguinte, quando o infeliz resolveu demonstrar toda a vastidão do espaço que o suíno ocupava em sua alma. Ele fez questão de gastar na cantina da escola todo o dinheiro adquirido no dia anterior, comprou doces, refrigerantes e o escambau, veio até onde eu estava e ficou fazendo suas interjeições ininteligíveis enquanto olhava pra mim e fazia aquela cara de “Quer? Então compra!” Nessa hora parte do meu macio coração infantil ficou enrijecido, negro e com alguns pêlos. Aquilo já era demais, o espirito de gordo daquele desgraçado não conhecia limites, ele merecia uma lição, aquele tipo de lição karmica de que, se você é mal com o universo, o universo é mal com você. Eu estava disposto a personificar o universo na vida de Cassiano.
Nessa escola havia uma face do prédio que dava pro pátio, em tal parede havia uma beirada muito estreita na altura entre o segundo e o terceiro andar, nessa beirada era possível se esgueirar equilibrando-se e atravessa-la até a outra face do prédio. Com os pés nesses poucos centímetros de apoio dava pra percorrer os oito ou dez metros que ficavam a dois andares do chão, mas nem todos conseguiam, crianças menos ágeis ou muito novas nunca conseguiam à transpor por completo. Isso porque a partir de um ponto não havia mais onde se segurar com as mãos, apenas uns poucos canos verticais muito finos e mal presos que saiam pela parede de alvenaria vindos do banheiro que ficava do outro lado. Esse lugar era usado como ponto seguro contra agressores que estivessem à caça de algum aluno por quaisquer desavenças, mas não era muito efetivo, porque o aluno que estivesse querendo ajustar contas com o outro e fosse carente de agilidade, ou simplesmente estivesse com preguiça de escalar até lá, poderia simplesmente tacar pedras no que estivesse tentando se refugiar.
Contudo em minha ânsia de vingança eu consegui imaginar outra função para aquela beirada. No final da aula do mesmo dia em que tive que assistir Cassiano se refastelando com o dinheiro que era meu por direito, escalei a beirada e escrevi com giz no lugar mais inacessível com letras garrafais “GORDO SURDO COVARDE LADRÃO.” No dia seguinte eu estava afoito para ver o que aconteceria e não me preocupava com alguma retaliação de Cassiano, porque sabia que existiriam muitos suspeitos, ele tinha muitos inimigos e quando cheguei ao muro todos estavam lá, rindo dele e chamando outros para rirem junto. Cassiano tinha lido aquilo e ficado louco, corria enfurecido tentando bater a esmo no primeiro que alcançasse, mas eram muitos e todos fugiam apenas para logo voltar e continuar a rir. Todos sabiam que ele não era capaz de chegar até aquele ponto onde a frase estava escrita, e as pedras por sua vez de nada adiantavam contra palavras escritas com giz. Quase começando a chorar, Cassiano foi até o corrimão no alto da escada que dava acesso para um dos lados da beirada, nisso as risadas diminuíram e começou então um murmúrio que parecia o pressionar apesar de sua surdez, deixando claramente sua coragem em xeque.
Enquanto isso acontecia diante dos meus olhos, eu mal podia me conter de satisfação pelo quão bem minha vingança estava se concretizando, eu rezava pra que ele caísse e quebrasse uma perna ou braço, para assim eu poder ficar algumas semanas sem apanhar ou se preocupar em dobrar cada esquina da escola. Metade dos alunos que estavam ali deviam estar pensando o mesmo. Cassiano já estava na parte onde acabava a janela do banheiro e não havia mais onde se segurar com as mãos, sua imensa barriga prejudicava seu equilíbrio e ele teve de saltar até o primeiro cano. A crescente platéia de crianças fez um “ohhh…’. Dali ele pôde começar a usar sua mão para borrar algumas letras, enquanto ele fazia isso, as lágrimas brotavam de seus olhos em abundância. Para apagar as palavras por completo ele teria de se esgueirar até o cano seguinte, e a massa infante que assistia já contava com isso. Nesse momento eu pensava que deveria ter aproveitado e no dia anterior desaparafusado as presilhas dos canos pra que ele se espatifasse. Infelizmente não foi preciso, Cassiano se jogou até o cano seguinte dando um ou dois passos na beirada e quando alcanço-o já estava muito desequilibrado, foi apenas ele se agarrar ao cano de PVC para uma das presilhas se soltar. Houve um silêncio enquanto o cano angulava para o lado, ouvimos outra presilha ceder, e ainda outra. Seu corpo caiu junto com o cano e uma poça vermelha escura se formou ao redor de sua cabeça inerte logo depois.
A mudança no estado da multidão antes eufórica também me atingiu, houveram gritos, pedidos de socorro e tudo mais, ninguém mexeu no corpo até os primeiros funcionários chegarem e dispersarem as crianças aterrorizadas, algumas já em prantos sendo levadas para salas de aula. No caminho vi a professora da turma dos surdos-mudos chorando copiosamente . A corpulenta criança jazia de bruços e eu não pude ver seu rosto depois da queda, caso contrário, se aqueles olhos sem vida me fitassem eu poderia não me conter e entrar em desespero, admitindo que havia sido eu o desafeto que escreveu aquelas palavras. Mas nada disso aconteceu, eu fiquei paralisado, tão inerte quanto o corpo já sem vida que jazia no chão de concreto, ainda achei que talvez ele estivesse vivo, apenas um desmaio e um corte na cabeça. Senti um arrependimento repentino, eu não desejava a morte de Cassiano, seria uma vingança desproporcional, queria apenas que ele soubesse que o mundo é ruim com quem é ruim, ele deveria saber, ninguém deve achar que pode ser mau sem que haja vez ou outra um ajuste de contas. Se ele fazia tanta questão de infernizar a vida dos outros ele deveria esperar o pior, mas não, ele morreu chorando como um bebê. Por mais arrependido que eu estivesse, não me senti culpado, sabia que não tinha como ter previsto a tragédia e tão pouco desejava que tivesse acontecido. A culpa era da professora que nem sequer aprendeu língua de sinais ou ainda de seus pais que deviam ter escondido os chocolates e torresmos num lugar mais alto, mas principalmente do próprio Cassiano, que se desesperou quando alguém resolveu não aceitar quieto uma injustiça. Me senti muito arrependido, mas nem um pouco culpado.
O acontecido continuou reverberando na minha cabeça incessantemente, porque eu simplesmente não conseguia parar de negar minha culpa naquilo tudo, no entanto toda a extensão dos fatos só se fez completa para mim no dia seguinte. Eu morava poucas quadras do cemitério e o comboio féretro desfilou frente as janelas da sala da minha casa. Vi os primeiros carros subindo a rua seguindo o carro funerário e enquanto eu via o cortejo passar eu repetia por entre lábios mantricamente: “gordo filho da puta.” Me lembro de só conseguir pensar: “olha a merda que você fez, é tudo culpa tua.”
