

S
ão dez da noite e o busão está um inferno, lotado desta porra de estudantes e com um bando de losers indo para uma balada falida. O cobrador parece que saiu de uma briga de rua, todo acabado em cicatrizes bizonhas no rosto e na perna, e o motorista dirige feito um psicopata, parece querer causar muita merda. Tudo otário. Procuro socorro para não escutar o playboy com cara de pirralho falando dos seus projetos sociais para a mocinha toda boba. Bibibi, quero criar empresas para atuar no setor público e bibibi gerar oportunidades para os pobres... Caralho! Estou em um bonde de delírios juvenis de alto naipe. A minha vontade é pegar esse maluco pelo pescoço e mostrar para ele que o mundo é dos espertos, merda!
Yo soy experto, aproveito oportunidades e, claro, não me meto em confusão, apesar de ter vontade de gerar uma briga de vez em quando. Bem, que se foda. Talvez esta seja uma história de um grande negócio, mas de um negócio que é feito para fracassados, lunáticos, abandonados e carentes/doentes (como denomino esse tipo de situação). Eu atuo como uma gota medicinal (homeopática, é verdade) na vida dos meus clientes, um remédio contra a dor espiritual e que pouco resolve, mas alivia por um tempo, nem sei como. Acredito porque todos estão tão merda que nada supera o que vivem. Tem puto com dor no estômago, viciado em drogas, mulher que perde marido, corno incurável, depressivo gótico. Cada um tenho um trato, me resolvo através da ajuda espiritual, psicológica e também motivacional.
Prazer, eu me chamo Pantera e tenho o dom cair nas graças dos que se encontram nesse interior infernal. Tenho o poder de escapar pelas sombras e não deixo marcas… daí vem meu nome, sacou? Nunca me pegam e sempre me procuram com dinheiro sangrado de qualquer lugar. Não me importo. Só preciso aconselhar, dar sorrisos, falar que tudo vai ficar bem... E acaba por aí, sem amizades, sem sentimentos. Eu trato de ajudar e faturo com isso. Não que eu deseje algo de ruim ou faça sugestões que possam levar ao seu fracasso definitivo, deixo a vida encarregada disso... Quando esses caras me procuram é porque já estão nas últimas, ainda mais que a morte vem em efeito dominó na vida desses desgraçados, mãe, pai, tio. Suas caras são distorcidas pela tristeza em uma velhice precoce e vivem nessa total e obscura solidão, horrendos em quartos grotescos que caem aos pedaços na medida que aumenta sua apatia. Eles me procuram, me amam e não param de aumentar; talvez alguém desse ônibus seja meu cliente, mas não me importa. Quero distância!
Há quem se salve nessa lata velha. O casal descoladinho do banco da frente fala sobre os meus desenhos. Ah, olha só aquele smile chapado. Risos. Droga é pra otários. Risos. Nunca deixo de flagrar os comentários das pessoas sobre arte. Eu gosto de arte e também tenho um prazer especial com os doidos. Costumo cruzar com alguns pelos ônibus da vida, acho que costumam sentir o cheiro da confusão em mim, alguma piração magnetizada. O casal avista outro smile. Muitos risos. Começam a falar de quem seria o autor das pinturas. O rapaz diz que provavelmente a autora é uma mãe que teve um filho preso por tráfico e morto na prisão por gang rivais. Original, bem trágico, mas por sorte não tenho inimigos, no máximo ex-Mensageiros que me perseguem quando enloquecidos por uma tarde de diversão. A teoria da garota da frente é que toda essa “merda” (palavras dela) foi criada por uma organização evangélica com propósito de recrutar novos fiéis para sua seita antidrogas. Boa, os dois riem muito. No fundo, são dois otários debochados. Flagro esses debochados por todos os cantos, deve ser efeito de algum retardo mental que causa risadas. Ou maconha.
Fim da linha para esses otários e seus delírios. O boy parece estar caindo pelas tabelas, deve ter enchido a cara em um happy hour tosqueragem. O casal vagabundo continua dando risada. Que se comam ou se matem com esses venenos, não me importa. Desço da lata velha e já estou em frente do depósito da firma. É aqui onde a noite realmente começa. O Cúmplice abre a porta: como sempre, ele está em casa. Ainda bem, seu trabalho é esse mesmo, abrir a porta e deixar tudo guardado para mim. Nunca precisa tocar um dedo no material ou carregar algo, lavar qualquer coisa. Vive numa mamata para receber um salário mensal bem gordo como sua papada por um espaço em sua garagem onde guardo todas as tintas, moldes, panos e o meu Corsa Sedan Olimpiadas Prata 2004, o melhor carro para fazer o trabalho de Mensageiro nessa cidade. Meu carro fica aqui na casa do Cúmplice mesmo, pois só o utilizo para a Mensagem. De resto, prefiro pegar busão e escutar as histórias dos doidos que adoram os meus desenhos. Acho engraçado. É o meu momento de fama e anonimato.
Enquanto pego toda a parada e a coloco no carro, o Cúmplice acomoda mais uma vez a sua bunda gorda do sofá. Ele caminha muito devagar... Está assistindo a um jogo de futebol e pergunta se aceito uma cerveja. Nego e falo que vou sair para dirigir e que não se deve beber e dirigir. Ele fala, ah, é mesmo, como se fizesse diferença alguma para sua vida. A mesa a sua frente está cheia de restos de comida e bisnagas de molhos de todos os tipos. Pergunto se rolou alguma festa na casa e ele diz que não sem tirar os olhos do jogo de futebol entre dois times que nunca ouvi falar. Bem, acho que não entendeu a minha piada.
Meu carro é imperceptível pelas forças de segurança, ele tem a cor e modelo mais populares da década passada e nunca foi parado em qualquer blitz. Veículo que comprei do próprio Cúmplice quando comecei a me profissionalizar, pois vi necessidade de fazer um investimento no meu negócio. O mais engraçado é que nunca nem o levei para minha casa, pois acabei alugando a garagem do cara também. Para completar minha segurança, não chamo a atenção, sou feio e tenho cara de policial. Nunca dou sorrisos ou olho para as pessoas. Uso óculos de senhor e vivo bem vestido, de camisa e sapato. Não uso gravata porque dá muita bandeira de bandido.
O Mensageiro da noite me manda o recado: está no ponto indicado. Seu nome é Roger Guedes e, na verdade, não sei o que esperar dele pois conversamos muito pouco na noite passada, mas me parece ser um baita doidão. Pelo o que me disse, conheceu o serviço pelos anúncios que deixei nos grupos de recuperação de lunáticos. Disse que foi abandonado pela mulher porque usava muitas drogas e que estava desempregado. Mais um do perfil básico.

Meu serviço tem três perfis de clientes. O básico, que são esses lunáticos, drogados, fodidos, fracassados e sem futuro. O avançado, que é formado por pessoas notoriamente doidas e às vezes perigosas, com quem só mantenho relações não presenciais. E o perfil carente-juvenil, composto por pessoas delirantes e infantilizadas que não tem nenhum amigo ou noção de alguma coisa, nem acompanhamento médico ou social e estão sofrendo solitariamente pelo planeta. Estas últimas costumam me ligar todas as noites, muitas vezes nem atendo. Mandam mensagem no celular dizendo de como se sentem tristes e que precisam de ajuda pois estão prestes a pirar completamente. Mando comprar flores, tomar um calmante, aconselho visitar uma escola ou creche como voluntário. Eles vão, adoram, às vezes são expulsos e nem atendidos são de tão doidos. Aí sofrem por que fazem merda e se arrependem, mas me ligam como se eu fosse a melhor amiga do colegial.
Cobro cada 15 minutos de atendimento e ganho mais de mil reais por noite, se quiser. Mas haja saco, ainda mais que nem preciso de tanto dinheiro para levar a vida que tenho. Penso em viajar para Bahamas ou algum lugar bem longe dessa droga de trabalho, mas tenho medo de voar e fico aqui em casa mesmo, comendo no ifood e comprando bagulhos pela internet. A cerimônia da Mensagem só acontece com os quem tem alguma capacidade de conviver com pessoas e eu cobro por noite, como um tipo de atendimento vip para malucos. Eu me viro bem, trato com cordialidade e saco de cara qual é a do malandro.
Dois minutos para meia noite gelada: a hora quando os anjos justiceiros saem das jaulas. Homem de aço renasce e as ruas estão desertas de toda imundice!
O nosso ponto de encontro é o cemitério da Rodovia, um lugar bem perdido e é improvável que haja alguma outra pessoa a não ser o tal do Guedes. Quando contorno o viaduto posso avistar o desajustado de olho na estrada. Dou um aceno de luz e ele responde com os braços ao mesmo tempo que se protege do meu farol. Baixo o vidro do carona e com o som no talo, eu falo o combinado:
- Estou esperando em minha cela fria quando o sino começa a badalar. As areias do tempo para mim estão acabando, yeah!
- O sintoma do universo está escrito em seus olhos - Resposta certa. Este cara definitivamente é o Guedes.
Aviso ao mensageiro que o pagamento da cerimônia é antecipado e não há tempo mínimo ou máximo para a ocasião. Na verdade, tudo depende do meu humor e se vou com a cara do maluco. Ele concorda e já começo a gostar dele. Enquanto dirijo para o primeiro ponto de pintura, explico o procedimento da noite e todos os significados da Mensagem.
- A Mensagem foi recebida por um ente divino bem próximo a mim quem me passou essa missão de recrutar Mensageiros para continuar a difundi-la desde o além sagrado. Sua missão é me auxiliar na passagem da Mensagem e todos desta cidade imunda de pecados ficarão sabendo a verdade por trás de toda essa devassidão. Não faça perguntas, não tenha medo, nada pode nos acontecer. Você faz parte do instrumento que possibilita a verdade, então, basta me ajudar a segurar os moldes e pintar o recado: Droga é pra otário!
Ele nem pisca, parece estar em uma paixão profunda por mim. Esse discurso sempre funciona com os que são coitados de fato. Agora só preciso de uma rua bem inóspita com um muro fudido, mas para minha surpresa ele sabe falar.
- Cara, peraí, acho que eu te conheço de algum lugar. Você é o Hugo, né? Aquele bostão, ex-amigo do Cabeça, puta que pariu, sabia que era um otário por trás dessa merda de "intervenção urbana".
Maldição, fui pego pelo doido! É o Rogério, primo da Mari Pola. Como que não reconheci esse otário? Melhor desmentir tudo e fingir que o louco é ele.
- Com licença senhor, a sua postura está fora da liturgia da Mensagem. Creio que você me confunde com alguma outra pessoa ou está fora de si. Não nos conhecemos, posso te garantir isso.
Respondo sempre acima do nível dessa gentalha.
- Cala boca, Hugo. Puta que pariu, que ridículo… Imagina quando minha prima ficar sabendo disso, vai ser a maior piada. Cara, e que papo é esse de Mensagem? Pantera? Really? Isso é maior bandidagem, isso sim... Aliás, tá cheio dessa merda por toda cidade e você aí, fudendo a vida de vários coitados. Quantas pessoas você já enganou? Sério, quero ver você se explicar com a polícia, imbecil!
Fodeu! O negócio é tentar corromper o desgraçado e oferecer uma grana. Ele é estudante, deve ser um fodido.
- Olha, pega seus quinhentos e mais cem pila para deixar tudo okay, okay? Ninguém precisa ficar sabendo dessa história. Esse é meu trabalho, um bando de lunático vem aqui falar comigo numa boa e a gente faz algumas pinturas para o bem deles. Preciso de ajudantes e cobro para me ajudarem. Que mal tem nisso se eles são felizes? Eles adoram a Mensagem.
- Cara, deixa eu descer e cair o fora. Você tá na merda!
Paro o carro e, antes que ele saia, eu faço a última oferta.
- Toma, dois mil reais e ficamos acertados para sempre, sem polícia, sem merda alguma. Firmeza? Acho que podemos ficar numa boa, cara.
Rogério me olha com um sorriso irônico. Parece querer me sacanear.
- Olha, eu aceito. Mas só se formos dar um rolê.
Eram seis da manhã e eu ainda estava literalmente pichando todos os meus smiles chapados com o filha da mãe do Rogério. Atravessamos toda a ilha, da Ponta das Canas até a praia da Solidão, depois estivemos no Ribeirão da Ilha e acabamos amanhecendo no continente. Criamos versões ¨menos hipócritas¨ como Religião é para Otário e Maconha retarda o câncer. No fim, foi o sepultamento definitivo da minha carreira, já que mesmo pagando uma grana e fazendo o que ele quis, nada me garante que não me entregue para a polícia. Na despedida, o traíra não deixa barato.
- É bom você trocar seu número de telefone e retirar aqueles anúncios. Não seria legal que outra pessoa tivesse a minha experiência, Huguinho.
Digo que sim e vou embora. Passo na casa do Cúmplice e ele está dormindo pregadão. Deixo um bilhete escrito que ele pode ficar com o carro e que está demitido. Vou a pé para a rodoviária e pego o primeiro ônibus para casa da minha mãe. Adeus, Floripa. O mundo é esperto demais para mim. Sinto uma alegria imensa ao atravessar a ponte e desejo rapidamente que ela exploda enquanto pessoas tiram foto da paisagem… que tudo suma, mas com menos de cinco minutos de viagem somos parados por um grupo de policiais. Enquanto pessoas se esticam para tentar avistar alguma coisa e cochicham o que poderia estar acontecendo, escuto o motorista falar algo como "poltrona 23". A minha é a 23.
Um policial entra no ônibus e olhando pela numeração vem até a minha poltrona.
- Senhor Hugo Pantera? Prazer em conhecê-lo. Gostaria que o senhor me acompanhasse.
Destino cruel? Para meu espanto, ao invés de ser preso, fui contratado pelas forças de segurança do meu Estado para trabalhar como Assistente de Marketing com salário e benefícios incríveis, farda de policial e até arma eu tenho. Posso prender pessoas e até matar (quem sabe?), mas o meu trabalho é mais focado na parte intelectual. Hoje, desempenho ações de intervenção urbana para promover a melhora da imagem da nossa segurança pública, com destaque para minhas criações, os personagens Miliquinho e Gambazote. Os dois são amados pela garotada e fazem o maior sucesso nas redes sociais. Fiquei ainda mais rico e não ando mais de ônibus, pois tenho um motorista particular pago pela Secretaria. Às vezes, vou ao encontro dos milicos digitais e tenho alguns amigos que me apresentaram a paixão por montar quebra-cabeças, onde encontrei serenidade peça a peça. Vivo numa boa, pensando naquele otário do Rogério e no dia que vou prendê-lo. Será um dia lindo.