

ele venceu
Ele venceu, não posso mais fugir desta realidade. Infelizmente, não tenho mais força para lutar contra alguém muito maior do que eu. É inegável, quem me conhece, sabe. Eu tentei. Eu lutei, mas desta vez ele foi longe demais, não pude evitar. Ele venceu.
Ele venceu quando me colocou contra os outros com a propagação do caos de um mundo paralelo onde abusos são aceitáveis se feitos para manter os interesses do sistema. Venceu-me em seu jogo de escrúpulos alienados para deslocar ao desprezo cada responsável pelo seu destino e do acaso, mesmo que não tenham nada, nem onde dormir, nem como enxergar. Venceu pela semelhança da minha dor transformada em sacrifício e golpe de uma falha natural, da falta de importância nos bolsos e venceu na criação de ideias, pela pele que carrega ou pela origem que renega. Venceu através do cabresto, do grito mais alto, da ofensa vil e da indecorosa ameaça dos vagantes, dos espíritos traídos, dos sonhos falidos, dos fracassados de coração e sem capacidade de amar. Venceu através da chantagem pelo fim da vontade de vencer. Venceu quando criamos um exército doente que não respeita leis da vida ou dos homens e ainda ganha prêmios pela sua coragem como heróis sob ruínas tóxicas que matam a cada inspiração de perturbadas resoluções dadas a tapas na cara e em um sopro seco da tal arrogância de acreditar nas falácias que inventamos para justificar atrocidades contra qualquer um que atrapalhe o nosso plano de dominação. Venceu sem pejo quando colocou meus filhos contra mim para gerar o ódio e sofrimento com a propagação de um enferrujado obscurantismo figurado em uma espécie de fé transviada com permissão para matar. Venceu nesta luta cega e opressora de negadores da realidade e da cultura humana, na marca registrada do despotismo hipócrita da bandeira da esperança e dos bons costumes eugenistas típicos dos arbitrários que temem o destronamento de seus carnais sanguinários, que se viram ultrapassados por mentes frescas e férteis em seu sofá amassado por dobras de gordura que não param de crescer. Venceu porque sonhou viver novamente o tempo de glória, dos braços fortes, dos cabelos longos, da pele firme e do sorriso solto, que ficou para trás.
Ele venceu quando impôs as suas ideias com o meu gosto ácido de ganância desenfreada como hábito de saúde de frases prontas e felicidades torpes do canto simples daquele viver em vão do esforço diário do meu puro egoísmo. Venceu na frustração global que se alastra como um vírus contagioso e mortal e com a minha depressão fora de moda de língua enrolada de tanto mentir justificativas para ficar sentado no mesmo lugar a espera de que algo mude. Venceu na minha narrativa deletéria de tristeza em forma de digresso passatempo. Venceu no sadismo do ódio da minha torcida para sempre piorar. Ao dizer o que devo comer e com quem devo transar, venceu, mas também pelo cansaço, pela falta de perspectiva, pela evasão de sonhos e pela desistência dos resilientes no deserto da esperança, em fuga do suicídio coletivo do mundo melhor. Venceu com opressão, venceu pelo sistema de privilégios e venceu com a sua abissal máquina de fazer sofrer, mas também por se portar como a única mão esticada que restava na beira do precipício para o prometido conceito de liberdade opaca da fábula transformada em status como forma de saciar a ingênua ambição de quem nunca vai saborear do que saboreia o idealizado vencedor. Venceu porque pretende exterminar os que são contra a roda grande que gira sem parar e venceu quando exterminou opositores através da máquina de mentiras dos vilões da vez, descartáveis aliados transformados em heróis com as mesmas mentiras que sempre são contadas. Ele venceu na minha pobreza que se alastra e apavora. Ele venceu como Imperador, mas com servilismo de pelego em busca de migalhas.
Ele venceu ao castrar os meus filhos com repressão em troca de verdades arbitrárias da segregação anacrônica do distinto privilégio das imperantes tecnologias empalmadas para a ordem, nunca a revolução. Ele venceu com cada um no seu lugar, com seu costume absolutista e superior. Venceu em paranoia e perseguição, com a morte de inimigos obtusos e estereótipos que metem medo em minha crença em qualquer fada, santo ou nada. Venceu com mentiras o pluralismo que saiu dos guetos, com o corte de cabeças em qualquer deslize pelos túmidos brutos de berço isento de erros como desculpa de construção e progresso. Venceu ao esconder lágrimas para ascender com fogo e cultivar a minha vaidade de quem não tem brilhantismo nenhum para dar um sentido para quem não luta por algo além do seu próprio destino.
Ele venceu quando, finalmente, não consegui mais explicar as minhas contradições, o meu cansaço, a minha omissão em rebater os absurdos cruamente expostos como feridas abertas que ignoro e que me sugam forças até em breve me matar. Venceu na minha fuga para qualquer recanto onde oculto o que me cerca e me castiga em uma camuflagem oca de harmonia e resistência. Não resisti e quando o tempo passou e desanimei, ele venceu, mas também no derrotismo que tomou meu coração cheio de raiva de tanto perder.
Ele venceu quando parei de enxergar através da minha egolatria que contaminou cada decisão que tomei, sem me importar com as consequências ou danos que possam me atingir. Venceu no meu dar de ombros aos pedidos de socorros velados e em meus emburrados olhares ao meu delicado desagrado. Venceu quando fui rude com quem me ama por saber disso e não me importar. Venceu quando me encontrei sozinho e sem ninguém para me socorrer. Ele venceu quando me importar se tornou algo tolo e inocente, mas também com palavras vazias de sentido de simulações atrevidas e malabarismos retóricos das minhas rebeldias pueris como forma de meter o dedo na cara de quem eu sinto inveja por não parecer sofrer. Quando eu falei grosso para me sentir melhor que o outro, ele venceu e quando sucumbi a loucura, ao travesso transgredir da regra do extraordinário transformado em dose diária do vício desenfreado em troca de alguma razão ou do esquecimento do que prefiro não saber. Venceu pela mente solta em voos longe do solo que me oprime e destina o fim. Ele venceu me deixando inapto a sentir dor ou gratidão, amor ou perdão para viver uma história onde vencer é certo e perder não existe.
Ele venceu na minha necessidade de projetar os meus defeitos nos outros, na ânsia de proclamar uma absoluta solidez e despertamento interior como forma de ocultar fraquezas comuns a todos, mas negadas como prova de força. Venceu quando eu me disse verdadeiro, mesmo escondendo tantos absurdos e arrependimentos em meu avatar desapegado. Ele venceu com rasteiras aflições da disforme lucidez do meu tamanho e também mostrando-me como sou fácil de esmagar. Venceu porque era mais forte, mas rápido e mais adaptado para vencer. Ele venceu no talento transformado em iluminação para me colocar como caminhante da mesma história e a luta, nada significou, apenas mantive os olhos firmes para ver o que tudo isso me destinava.
Inti Raymi
Florianópolis, 17 de setembro de 2020.