


A
massa de água entre Continente e Ilha costumava ser um cartão-postal, décadas atrás, quando ainda não tinha espuma tóxica nem sofá boiando. Eu olho pro mar escuro, espremido na porta do vagão, e uma voz interior me lembra de que algumas pessoas já haviam caído ali porque uma das portas do vagão tinha aberto sozinha.
O metrô para na Beira-mar Norte, Linha Um, entre o Terminal de ônibus Central – o Ticen – e a rodoviária. Ainda tenho que tomar a Linha Dois, sentido Leste da Ilha. De lá, são cinco paradas, nas estações Mauro Ramos, Agronômica, Trindade, Udesc e Morro da Lagoa, antes da Rendeiras. Eu me pergunto se o próximo vagão vai cheirar a mijo ou a vômito.
Protejo a carteira no desembarque e me misturo à muvuca dos passageiros e vendedores: “Chip da Tchau, dex pila, vai um chip da Tchau?”, “Daí, jogadô! Cafezinho, salsicha, pão com ovo...”, “Dixcola trêx pila po latão?”. Tropeço em umas crianças descalças que sempre me pedem dinheiro e ouço uma música de flauta bem familiar e desagradável por cima daquela bagunça. Tento fugir daquelas notas, mas elas parece que me hipnotizam e me levam pra fora do corredor da Linha Dois.
Uma velha de roupa escura cheia de penduricalho toca uma flauta curta de bambu sentada no chão com as pernas cruzadas. Meu estômago revira, minha vista escurece. Eu tinha esquecido aquela mulher fazia muito tempo. Ela olha pra mim, e sinto como se encostassem brasas nos meus olhos. Seguro o vômito. O mesmo cabelo branco bem comprido, amarrado na altura da nuca; o vestido de renda, os anéis de ossos, os brincos e colares dos nossos dentes de leite. Eu tinha esquecido tudo.
Quando eu era criança, numa noite dessas, ela levou dois de meus irmãos e eu por uma trilha no Rio Vermelho até um ponto na praia do Moçambique. A gente ia pro Congresso de Bruxas da Hora Morta, e a função das crianças era vigiar o mato. A velha se cobria com o couro de um jacaré amaldiçoado que, quando ela queria, transformava o corpo dela no de um lagarto bípede grotesco. Nessa forma ela mutilava pescadores e sequestrava recém-nascidos, que ela transformava em coisas como eu.
Cada vez que um de nós esfriava e abria os olhos, ela apontava pro mesmo moleque torto no grupo e dizia se tu não obedecê à vovó, a vovó vai virar ox teu pezinho pra tráx, quem nem ox do teu irmão, entendesse? Depois ela servia um prato com carne ao alho e olho.

O processo é simples: Faça massa de cuca, misture as almas dos bebês e reserve. Cozinhe a carne deles num caldeirão em fogo conjurado do Inferno. Acrescente erva-do-diabo, cogumelos-de-saci, um litro de maré de Lua Nova, muito alho, sal e pimenta a gosto. Reserve. Separe a massa de cuca em assadeiras com formato de criança. Recheie as cucas com goiabada e tangerinas,
que é pra dar uma corzinha, e leve ao forno.
O Congresso Bruxólico começou à meia-noite e contou com bruxas de toda a Ilha, algumas do Continente e ainda outras de dimensões paralelas e buracos no chão. O Capeta, naquele dia muito elegante com seu terno de pele do Coro Natalino e cheirinho de Le soufre de l`Enfer, lambeu os chifres e apresentou a convidada de horror, A Dívida. A Dívida tinha recém voltado de um curso de especialização nos Estados Unidos e era a palestrante do Congresso, cujo tema era “Adaptação aos Novos Tempos – Técnicas Contemporâneas de Esculachos Generalizados”. Tinha algo diferente no ar. Poucos vermes e baratas tinham comparecido. As bruxas não cagavam tantas blasfêmias quanto de costume. Elas pareciam apreensivas.
Depois de uma breve apresentação, O Tinhoso cedeu a palavra À Dívida. A Dívida era uma bolha obesa que suava pus, e logo desdobrou do bolso um homem de paletó e cabeça encaixados no torso. Ela era uma excelente ventríloqua e, pela boca do homem, saudou a todas com desejos de muitas eternidades no Inferno, e declarou que o Projeto Pós-Éden precisava de mudanças.
Ela dizia que o velho conceito “Bruxa” já não funcionava. A Raça até usava o nome delas pra promover O Turismo. Escritores e Cineastas tinham exposto aquelas mulheres à exaustão e ninguém se assustava mais. Bruxa era coisa de desenho animado pra criança. Na Praia Mole, por aqueles dias, tinha um cartaz que divulgava uma festa na “Terra das Bruxas” em Jurerê, e era comum ver criança com camiseta da “Ilha da Magia” brincando na areia. Bruxa não tem mais graça. O Homem de Terno continuou dizendo que a Separação da Humanidade continuaria sendo feita como desde o início dos tempos, mas de outra forma. Os tempos eram outros. O Mal não era mais mau, o Bem não era mais bom. Virtude e Pecado eram adequados de acordo com a necessidade de quem estivesse no poder. A Maldade era Bondade, a Mentira era Verdade, o Desmatamento era Crescimento e vice-versa. Nós tínhamos que aproveitar aquele novo fluxo de ideias e levar o Projeto a outro nível: o da Modernidade. Isso já estava acontecendo no mundo todo, aqui não podia ser diferente. Vamos expandir o Mercado Imobiliário até inchar, alimentar o Turismo Predatório até explodir e encher as praias de cocô. Depois venderemos o conceito de que tudo isso é necessário ao crescimento da cidade, portanto, bom pra todos. Vamos investir nA Educação até que todos pensem do mesmo jeito. Quando eles acharem que estão unidos, estarão o mais separados. Não é maquiavélico? Essa é a Maldade dos Novos Tempos. Em vez de dividir famílias, dividiremos grupos sociais inteiros. Em vez de semear a discórdia entre vizinhos, plantaremos hectares de guerras entre grupos religiosos e etnias, e muitos vão achar que é assim que tem que ser. Isso é profissionalismo. Olha, gente, bruxa fazendo doce de criança parece história do Sítio da Maritaca Verde. Dar nó em crina de cavalo, até morcego dá. Matar gente, essa gente já mata. Vocês estão defasadas. Vocês viraram bobagem. Só vou tirar o chapéu pra aquela de vocês que teve a ideia de por fogo em cabeça de mula, isso foi visualmente interessante. Vocês precisam ver o que os vampiros andam fazendo lá em São Paulo, que exemplo. E olha, meninas, já é hora de começar a ganhar algum dinheiro. Fazer maldade de graça é coisa de amadores.
O lugar foi tomado por um rebuliço de bruxas indignadas que ameaçavam bruxalizar A Dívida.
Cimentar a Ilha? Fazer maldade com bondade? Daqui a pouco ela ia mandar que fizessem caridade, igual ao Outro lá, o Jesus. Pra apaziguar a situação, A Dívida sorriu com o bonequinho humano e disse que compensaria as colaboradoras com uma oferta imperdível: na compra de uma Vassoura Voadora Zero Quilômetro com GPS, Computador de Bordo e Ar-condicionado (em até 48 vezes no cartão de crédito), você ganha um Kit Enceramento e Cristalização. É uma pechincha, é só economizar no dízimo. Mas espere! Se fizer o pedido na próxima hora...
...algumas bruxas se interessaram, e a confusão foi generalizada. Nem o Diabo conseguiu dividir. Entre insultos, ameaças de conversão ao Cristianismo e vassouradas, a Sociedade das Bruxas provou do próprio remédio e se separou.
O Tempo esfumaça nos trilhos do metrô e eu volto para onde e quando eu estava. Ainda na estação, eu ouço o anúncio da Linha Dois nos autofalantes. Minha avó me explica que este é um movimento de retorno às origens. Eu vejo alguns dos meus irmãos misturados à multidão: um deles vende artesanato, outro trabalha no Café, outro limpa o banheiro. Algumas bruxas das antigas também estão por ali: leem as mãos dos passageiros, jogam tarô e vendem ingressos pra Festa da Tainha. Um dos meus primos-rato de Ratones parafusa alguma coisa na manutenção. De repente lembro que vejo aquelas pessoas todo dia.
- Tu venx com a gente? – ela pergunta.
Eu não sei o que pensar nem o que fazer. A lembrança da minha origem tinha me deixado um gosto terrível na boca. Eu não sou maniqueísta. Maldade por maldade, que fique tudo assim mesmo, pelo menos eu tenho um emprego.
Ela parece ler meu pensamento:
- Maldade por maldade, a gente fica com a nossa própria. Vou te dar um tempinho pra ti decidir, mô quirido.
A velha toca algumas notas estridentes na flauta e meus tornozelos começam a retorcer.
